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Memória, História e Direitos Humanos


Publicado em:
21/08/2023
Kesia Silveira Ferreira
Kesia Silveira Ferreira
Advogado

OS CAMINHOS DA MEMÓRIA: ANÁLISE SOBRE A RENOMEAÇÃO DA PONTE HONESTINO GUIMARÃES

Késia Silveira Ferreira

I - INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo discutir o processo histórico de disputa pela memória no ato renomeação da ponte Honestino Guimarães, localizada em Brasília. A crise em relação aos monumentos e lugares de memória tradicionais revela a emergência contemporânea por outras narrativas históricas, a reivindicação de renovados usos do espaço da cidade e a luta por mais igualdade social.
A perpetuação destes símbolos, após a diluição das coalizões de poder que deram sustentação ao regime de exceção, sugere a indisposição de setores presentes em seguidos governos que se sucederam a esse regime em trabalhar a memória coletiva no sentido de valorizar a resistência à ditadura. Por outro lado, a resistência a esses símbolos promove uma consciência crítica habilitada a prevenir a volta de regimes de força.
A fim de nortear o debate, recorro aos pensadores Andreas Huyssen, Mariana Joffily, Giselle Beiguelman e Carlo Ginzburg em razão de seus estudos no campo dos debates e implicações políticas e usos do passado e da memória. Outras fontes também foram consideradas, tais como trechos de entrevistas e noticiários que envolvem o tema.

II – MEMÓRIA E DEBATE PÚBLICO

A definição de um nome para um logradouro público, tal como uma rua, avenida, praça, ponte, rodovia, escola, dentre outros, regra geral, constitui-se em homenagem ou reconhecimento pelas contribuições prestadas à comunidade, no caso de pessoa, ou pode representar a necessidade de se promover determinados valores caros a esta comunidade (p. ex. “rua da justiça”, “palácio da liberdade”), ou promover a lembrança de datas históricas importantes (“avenida Sete de Setembro”, “rua Treze de maio”).
Desta forma, verifica-se que tais escolhas não surgem aleatoriamente, razão pela qual não é raro encontramos na contemporaneidade um acirramento da disputa simbólica e material referente ao nome dado a espaços públicos, como no caso de Brasília, a capital federal.
Em 02 de julho de 2015, o Jornal Correio Brasiliense noticiava que a “Ponte Costa e Silva troca de nome e termina homenagens à ditadura no DF” (CORREIO BRASILIENSE, 2015). Após tentativas anteriores em 1999, 2003 e 2012, finalmente no ano de 2015 os deputados distritais resolveram alterar o nome da construção.
O Projeto de Lei nº 130, aprovou a troca do nome do ex-presidente Costa e Silva para o do líder estudantil Honestino Guimarães. Todavia, intensas batalhas judiciais ainda seriam travadas:
O Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal decidiu, nesta terça-feira (6), que a “segunda ponte” sobre o Lago Sul, voltará a se chamar Ponte Costa e Silva. Uma lei de 2015, que renomeou a estrutura para Ponte Honestino Guimarães, foi declarada inconstitucional. Cabe recurso. (...) Desde 2015, o caso já passou pela Vara de Meio Ambiente e pela 7ª Turma Cível do DF, sem uma solução definitiva.

O processo subiu para o Conselho Especial porque, nessas idas e vindas, a ação passou a tratar da constitucionalidade da lei aprovada. A ponte – uma das três ligações entre o Plano Piloto e o Lago Sul – foi inaugurada em 1976. Projetada por Oscar Niemeyer com o nome de "Ponte Monumental", ela foi rebatizada pelo ex-presidente militar Ernesto Geisel para homenagear o antecessor Costa e Silva.
Este episódio envolvendo o nome da movimentada ponte brasiliense é peculiar e nos leva a perceber de forma nítida as diferentes ideologias que norteiam as disputas para aposição da placa com o nome do homenageado. De um lado, temos a designação de um ex-presidente da ditadura militar, Costa e Silva, que comandou o país entre março de 1967 e agosto de 1969, inclusive com o Ato Institucional nº 5 sendo assinado pelo mesmo em 1968. De outro lado, rememora-se Honestino Guimarães, estudante da Universidade de Brasília preso político pela Ditadura em um dos momentos de maior repressão na história do país. Em 2014, Honestino recebeu anistia política post mortem e a certidão de óbito foi corrigida. Apesar da mobilização entorno da defesa de seu nome para renomear e ressignificar esta ponte de Brasília, o Poder Judiciário mais uma vez foi acionado e decidiu por retornar o nome do ex-presidente Costa e Silva.
Tanto que no dia 6 de novembro de 2018 o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) considerou a Lei n° 5.523/2015 – que alterou o nome da ponte, inconstitucional. A ação civil pública movida pela então procuradora Bia Kicis baseava-se no argumento de que a mudança deveria ter passado por consulta pública. O outro é o “vício de iniciativa”, já que caberia apenas ao governador do DF sugerir projeto de mudança de nomenclatura do logradouro. Abaixo o trecho da decisão :

(...) É necessária a realização de audiência pública, com a ampla participação da população, para a alteração da denominação de logradouros públicos, de modo a conferir maior proteção ao patrimônio cultural, propiciar maior realização do princípio democrático.

Após a sentença, a deputada comemorou o fato em uma entrevista concedida ao jornal “Poder 360” publicado em 07/11/18:

Acabamos de ganhar uma ação importantíssima, porque ela representa que os comunistas não passarão. No governo Bolsonaro, todos as ações dos comunistas irão cair.

Após uma longa disputa, no dia 13 de dezembro de 2022, a Câmara Legislativa do Distrito Federal derrubou o veto do governador Ibaneis Rocha ao projeto de lei nº 1.697/2021, do deputado Leandro Grass (PV), e finalmente o nome da Ponte Costa Silva, no Lago Sul, foi alterada para Ponte Honestino Guimarães. Sobre a vitória histórica o então deputado Leandro Grass fez o seguinte comentário:

Fizemos uma correção civilizatória ao mudar o nome da Ponte Costa e Silva para Honestino Guimarães. A homenagem tem que ser a ideias, pessoas e eventos que estejam em sintonia com valores humanos. E o nome de Honestino representa isso.

A leitura dos textos colacionados leva a uma conclusão inequívoca: a disputa pela memória também é uma disputa de narrativas e diz muito sobre o motivo dessa tensão no cenário brasiliense. Para um determinado grupo, rememorar o nome de Honestino Guimarães é uma forma de reparação histórica e demonstra como lidar com tensões pretéritas ao se utilizar desses símbolos e desses lugares de memória em torno da luta política. Soma-se a isso um esforço em registrar fatos e esclarecer circunstâncias envolvendo casos de graves violações de direitos humanos na época do Golpe militar de 64. Para o outro grupo, a despeito dos mecanismos técnicos com que enfrentaram o tema (pugnando pela inconstitucionalidade da lei) a discussão resume-se a “derrotar o comunismo” revelando um movimento de relativização do peso da ditadura.
É nessa perspectiva que podemos buscar em Carlo Ginzburg (2007), o entendimento da História como uma ciência que possui seus gozos estéticos próprios, mas que não pode se dissociar de seu necessário rigor, ligado à erudição e à investigação dos mecanismos históricos. Na perspectiva de “rastrear” os indícios, as pistas, os sinais, Ginzburg, não os toma como prontos, mas os problematiza. O autor trabalha com significativo que a relação entre a dimensão microscópica e a contextual mais ampla tenha se tornado em ambos os casos, o princípio organizador da narração. Nesse contexto, indaga-se: essa nova forma de pensar os espaços na cidade de Brasília, resgatando o nome de pessoas que foram vítimas do Golpe militar não significaria uma mudança no paradigma e na forma de se construir a História?
Andreas Huyssen, em Culturas do passado- presente indica a rememoração como formadora dos elos que nos ligam ao passado e são esses modos de rememorar que nos definem no presente. O passado é, portanto, essencial para a construção da identidade dos indivíduos e da sociedade, influenciando nossa visão de futuro a partir de um determinado conjunto de memórias (HUYSSEN, 2000, p. 67).
Os embates contemporâneos sobre da nomenclatura de espaços urbanos e logradouros públicos que fazem menção a personagens do período militar, são reflexos da tentativa de ressignificar homenagens que foram concedidas em um tempo histórico distinto.
Sob o prisma historiográfico, nota-se que o movimento de renomeação de espaços públicos ganhou força a partir de 2011, quando o Governo Federal criou a Comissão Nacional da Verdade por intermédio da Lei 12.528/2011, que instituída em 16 de maio de 2012, teve por “finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988”.
Esse fato explica a atenção pública ao tema da Ditadura militar ocorrida no Brasil em 64 no Brasil. No artigo intitulado “Aniversários do golpe” historiadora Mariana Joffily analisa diversos momentos em que ativação da memória alargaram o debate acadêmico sobre a ditadura para o espaço público:

(...) A atuação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), amplificada por comissões estaduais, municipais e institucionais e a presidência de uma ex-guerrilheira fizeram com que o interesse no tema chegasse a um ápice dificilmente reproduzível. (2018, pg. 206)

O excerto nos remete ao fato de que a discussão pública sobre a renomeação de logradouros faz parte desse momento de efervescência da construção da memória coletiva no sentido de rechaçar a ditadura e ao autoritarismo por ela implementada. Através de relatos de vítimas ou parentes de desaparecidos políticos o Brasil o discurso sob a ótica do oprimido alcançou um protagonismo, possibilitando a reescrita da história no Brasil. Em outra passagem, a historiadora afirma:

(...) Houve ainda o estabelecimento de memoriais e monumentos públicos, bem como iniciativas de rever a nomenclatura de logradouros públicos que homenageavam nomes relacionados à ditadura militar. (2018, pg. 234)

É claro que a provocação feita pela Comissão Nacional da Verdade não foi a única motivação para rever a nomenclatura de logradouros púbicos. Sobre isso, retomando Huyssen atualmente vivemos o que poderíamos denominar de “cultura da memória”, na institucionalização sem precedentes do que deve ser lembrado no processo de “musealização” do mundo. Paradoxalmente, também vivemos no tempo do esquecimento, “da falta de vontade de lembrar (...) da perda da consciência histórica” (HUYSSEN, 2000, p. 18). Movimentando-se em meio a essa relação, aparentemente contraditória, o autor destaca que as abordagens sociológicas sobre a memória coletiva “não são adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da memória, do tempo vivido e do esquecimento” (HUYSSEN, 2000, p. 19).
A instauração da Comissão da Verdade, nesse sentido, não só projetou o debate sobre a Ditatura Militar para o meio público como também pode ser entendido como um novo meio cabível de se reconstituir a história. A oitiva das vítimas e testemunhas sobre os atos de violência praticados pelo Estado, situa-se no campo da “microanálise”, isto é, a análise de elementos do passado histórico em nível de escala muito reduzido, tendo como alvo aspectos culturais, econômicos e sociais. A exploração de fontes por meio de narrativas e da descrição etnográfica, como defende Ginzburg (2007), permite vislumbrar o entrelaçamento entre o falso, o verdadeiro e o fictício, demonstrando que as narrações históricas e as narrações ficcionais promovem uma disputa sobre a representação da realidade.
Esse talvez seja o ponto nevrálgico da questão aqui discutida: não há outra forma de estudar o passado senão pela via política. A disputa acirrada em torno da renomeação da ponte traduz bem esse campo de batalha entre as políticas da memória e as políticas do esquecimento a fim de evitar o “memoricídio”.
“Memoricídio” termo cunhado pela professora Giselle Beiguelman em sua obra “Memórias da amnésia – políticas do esquecimento” remonta ao incêndio do Museu nacional, ocorrido em 2018, levantando a questão sobre a “subtração do conhecimento delegado as próximas gerações” (p. 215). Em outras palavras, o neologismo pode ser entendido como um apagamento da história, a destruição do passado através de seu acervo, de suas fontes, ou, resgatando o pensamento de Mirko Girmerk, “a intenção deliberada de destruir todos os traços de existência cultural e histórica de uma nação em um determinado território” (apud Beiguelman pg. 216).
Pensando no incêndio de forma alegórica, ou seja, como uma representação do extermínio à História, entrevejo que esse movimento em torno dos usos políticos dos espaços públicos está alinhado ao objetivo não apenas de assegurar o resgate da memória e da verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas durante o Regime militar no Brasil, no sentido de contribuir para o preenchimento das lacunas existentes na história de nosso país em relação a esse período, mas também para o fortalecimento dos valores democráticos.
Trata-se de considerar a potência coletiva da memória como forma de apresentar à sociedade brasiliense a dimensão histórica de casos em que ocorreu graves violações de direitos humanos, tornando-a pública por meio de seus locais.
Por outro lado, em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.
Huyssen (2014) busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido é um exemplos de como uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.
A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos.
Assim, se, por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos, por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. E é por isso que para o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).
Ora, claro que a disputa pelo restabelecimento da verdade é também um fazer ideológico. Tais lutas implicam, por parte de diversos atores, estratégias para oficializar ou institucionalizar uma (sua) narrativa do passado. Logo, para compreender a prática social, como no caso discutido, é imprescindível considerar o mundo de significados socialmente e historicamente construídos.

III- CONCLUSÃO

O caso da alteração do nome da ponte Costa e Silva para Honestino Guimarães surge em um contexto específico de redimensionamento das relações entre memória, história e democracia.
É notável o protagonismo da memória, descrito por Huyssen (2014) como a emergência de uma cultura e de uma política, especialmente a partir da queda do muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul.
Em âmbito nacional o protagonismo da memória como forma de se pensar a História do Tempo presente, surge através da repercussão da Comissão Nacional da Verdade na elaboração de um debate público sobre o Golpe militar no Brasil, demonstrando que a resistência deve se dar não só no tempo, mas também no espaço.
Em se tratando de uma história do presente – se faz relevante caracterizar a cidade como espaço de disputa de memória, nela apontando a presença de signos do regime autoritário com os quais os citadinos conviveram por décadas após o fim do regime autoritário sem que isto fosse problematizado no espaço público.
Isto porque tendem a coexistir, dentro de uma mesma cidade, símbolos urbanos que expressam a forma histórica da produção simbólica do espaço, estabelecendo vínculos entre o passado e o futuro.
Sendo assim, concluo que as iniciativas no sentido de rememorar o nome de Honestino Guimarães encontram-se destinadas a construir um ideário de resistência ao cometimento de novas violações de Direitos Humanos. Essas medidas podem assumir uma diversidade de formas, dentre as quais se destacam o dever de proteger o valor histórico e político que portam tratando-se de um elemento necessário ao dar sentido ao acontecido.


















Referências Bibliográficas

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014.

GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades, in O fio e os rastros: verdadeiro, falso fictício. Trad. Rosa F. Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 311-335 e 426-430.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

HUYSSEN, Andreas. Os direitos humanos internacionais e a política da memória: limites e desafios, in Culturas do passado-presente – modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto e Museu de Arte do Rio, 2014, p. 195‐213.

JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações
políticas. Tempo & Argumento, v. 10, n. 23, jan./mar. 2018, p. 204-251.



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