Coleta de DNA inconstitucional


Publicado em:
15/06/2023
Renan Bastos Nunes
Renan Bastos Nunes
Advogado

1. Sanção da Lei n.º 12.654, de 28 de maio de 2012


No dia 28 de maio de 2012, foi publicado no Diário Oficial a lei n.º 12.654, com três artigos normativos e um artigo de vigência.


O artigo 1º acresce parágrafo único ao art. 5º da Lei n.º 12.037/2009, que "dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, regulamentando o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal", sob os seguintes termos:


"Art. 5º. ...
Parágrafo único. Na hipótese do inciso IV do art. 3º, a identificação criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético."


O artigo 2º acresce três artigos à Lei n.º 12.037/2009, sob os seguintes termos:


"Art. 5º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
§ 1o As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.
§ 2o Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
§ 3o As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.
Art. 7º-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito.
Art. 7º-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo."

Ainda, no artigo 3º, acresce um artigo à Lei n.º 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), sob os seguintes termos:

"Art. 9º-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.
§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético."

O art. 4º estabelece o prazo de 180 (cento e oitenta) dias da data da publicação para a lei entrar em vigor.

2. Dos Direitos Humanos

Ao longo da história, a humanidade vem construindo o Direito, principalmente derrubando regimes tirânicos e reivindicando direitos que se consolidariam ao longo do tempo, os chamados direitos civis e políticos ou de liberdade. Atualmente, esses direitos são conhecidos de direitos humanos de 1ª geração.


Tempos depois, seria a vez de estabelecer direito mínimos em relação às questões sociais, chamados de direitos sociais e econômicos ou de igualdade. Atualmente, esses direitos são conhecidos como direitos humanos de 2ª geração.


Mais um tempo e viria a defesa do meio coletivo - o meio ambiente, os edifícios históricos, os pontos turísticos, os consumidores -, chamados de direitos coletivos, transindividuais ou individuais homogêneos ou, também, de fraternidade. Atualmente, esses direitos são conhecidos como direitos humanos de 3ª geração.


Atualmente, são reconhecidos mais duas gerações de direitos humanos. Relativamente ao que está sendo aqui discutido, será discutida a lei à luz dos direitos humanos de 4ª geração.


Os Direitos Humanos de 4ª Geração é resultado da preocupação humana do cruzamento do acúmulo de informações acerca das pessoas com a possibilidade de descrição e análise do material genético dos seres vivos - inclusive, dos seres humanos.


Noberto Bobbio, em sua obra "A Era dos Direitos", já previa essa situação:


"Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de Quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. Quais são os limites dessa possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação? Mais uma prova, se isso ainda fosse necessário, de que os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem - que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitação do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. As primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não-agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ação positiva do Estado."


O que para Bobbio era possível, para nós já é certo. Porém, a pergunta permanece: quais são os limites dessa manipulação? O próprio autor nos diz que os direitos não nascem todos de uma vez, e sim quando devem ou podem nascer.


Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem, que acompanha inevitavelmente o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens, ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, enfrentadas através de demandas de limitação do poder, ou permite novos remédios para as suas indigências, que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.


Ao caso em tela, devemos verificar o surgimento de ameaças à liberdade do indivíduo, as quais devem corresponder direitos de liberdade ou um não-agir do Estado.


A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 nos garante uma definição de liberdade:


"Art. 4º A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei."


Resta-nos óbvio que o conceito de liberdade para a relação Estado-cidadão é mais restritiva, haja vista aquele deter o monopólio da produção legiferante, da execução normativa e da jurisdição coercitiva.


Aos agentes do Estado é possibilitado agir em face do cidadão de acordo com o que estiver permitido e prescrito pela lei. Esse é o princípio da reserva legal. Porém, esta mesma lei deve estar amparada pelos demais princípios constitucionais, principalmente sem violar os direitos e garantias individuais e coletivas.


3. Da violação do art. 5º, X, da Constituição Federal


Assim determina o inciso X do art. 5º, CF:


X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;


Com efeito, o princípio da informação já se choca com o princípio da intimidade quando se trata de investigação de paternidade, como podemos ver da jurisprudência do STJ que segue:


RECURSO ESPECIAL CONTRA ACÓRDÃO QUE MANTEVE O INDEFERIMENTO DE PETIÇÃO INICIAL DE CAUTELAR PARA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA VOLTADA À REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA PARA INSTRUÇÃO DE FUTURA DEMANDA INVESTIGATÓRIA DE RELAÇÃO AVOENGA.
1.NÃO CONHECIMENTO DA IRRESIGNAÇÃO POR DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL, DADA A AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE O ARESTO IMPUGNADO E OS PRECEDENTES DA CORTE INDICADOS COMO PARADIGMAS, EVIDENCIANDO O INEDITISMO DO TEMA NO ÂMBITO DESTA CORTE (RISTJ, art. 255, §2º).
(...)
4.INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA, CARENTE DE REGULAMENTAÇÃO, EM HARMONIA COM O REGIME DE FILIAÇÃO DISCIPLINADO NO CÓDIGO CIVIL - APARENTE TENSÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE MESMA MAGNITUDE QUE DEVE SER SOLUCIONADA MEDIANTE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (RAZOABILIDADE), SENDO ESTE O VETOR HERMENÊUTICO APROPRIADO A SALVAGUARDAR OS NÚCLEOS ESSENCIAIS DE DIREITOS EM SUPOSTA COLIDÊNCIA - VALOR/PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE TANTO INFORMA O DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL, LASTRADO NA VERDADE BIOLÓGICA DO INDIVÍDUO, COMO TAMBÉM, OS DIREITO DE FILIAÇÃO, PRIVACIDADE E INTIMIDADE DO INVESTIGADO E DAS DEMAIS PESSOAS ENVOLVIDAS EM LIDES VOLTADAS À CONSTITUIÇÃO COERCITIVA DE PARENTESCO, GARANTINDO-SE SEGURANÇA JURÍDICA NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA - INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA DO DIREITO À BUSCA DA VERDADE BIOLÓGICA, RESSALVADO O DISPOSTO NO ART. 48 DA LEI N. 8.069/90, QUE ENSEJA A OBSERVÂNCIA DO REGIME DE FILIAÇÃO REGULADO NO CÓDIGO CIVIL - IMPOSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO DE PARENTESCO DE FORMA INTERPOSTA (PER SALTUM), TENDO EM VISTA O CARÁTER LINEAR DO REGIME ESTABELECIDO NO CÓDIGO CIVIL (CC, ART. 1591/1594), DE MODO QUE AS CLASSES MAIS REMOTAS DERIVAM DAS PRÓXIMAS.
4.1. O princípio da proporcionalidade não autoriza conferir um caráter absoluto ao direito de identidade genética, para com base nele afastar a norma restritiva do art. 1.606 do CC, tendo em vista que o valor/princípio da dignidade da pessoa humana informa tanto o direito do indivíduo buscar sua verdade biológica, como também a segurança jurídica e a privacidade da intimidade nas relações de parentesco do investigado e das próprias gerações antecedentes à investigante, exceto venha o legislador futuramente regular o tema de forma diferente.
4.2. A concentração da legitimidade para investigação da identidade genética de determinado tronco familiar na geração mais próxima, enquanto viva, constitui entendimento mais adequado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais em tensão, respectivamente, identidade genética de descendentes remotos e a privacidade e intimidade do investigado e das próprias classes de parentesco mais imediatas, garantindo-se segurança jurídica às relações de família e respectivo regime de parentesco, evitando-se o risco de sentenças contraditórias e transtornos irreversíveis ante o aforamento de múltiplas ações judiciais para o mesmo fim, por parte de um número muito maior de legitimados, então concorrentes.
4.3. Se, por um lado, é razoável obrigar qualquer indivíduo vir a juízo revelar sua intimidade e expor sua vida privada para se defender de demanda dirigida ao reconhecimento de parentesco, com consequências sócio familiares irreversíveis, não há essa mesma proporcionalidade para autorizar que esse idêntico investigado possa ser constrangido por todos os demais descendentes de determinado parente de grau mais próximo, sujeitando-se a um sem número de demandas, com possibilidade de decisões incongruentes, presentes e futuras, nas quais um mesmo tronco de descendência, cada qual por si, poderia postular declaração judicial de parentalidade lastrada em um igual vínculo genético. (...)
(REsp 876.434/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2011, DJe 01/02/2012)

E da jurisprudência do STF que segue:



INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA - CONDUÇÃO DO RÉU "DEBAIXO DE VARA". Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução da específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos. (HC 71373/RS. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento: 10/11/1994. DJ de 22/11/1996)


Portanto, se nem mesmo o réu em um processo de investigação de paternidade deve ser forçado pelo Poder Judiciário a realizar exame de DNA (devendo porventura sentença procedente se fundar nos outros meios de prova), age inconstitucionalidade o Estado que tenta resolver problemas de ordem prática violando a Constituição.


4. Da violação do art. 5º, XLIX, da Constituição Federal


Assim determina o inciso XLIX do art. 5º da CF:


XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;


Assim como delineado no item anterior, deve o Estado respeitar a integridade física e moral dos presos (e aqui tanto valem os provisórios quanto os condenados), tanto através de ações (agindo para que seja garantida a dignidade e condições mínimas dos estabelecimentos prisionais) quanto através de omissões (omitindo-se de agir com abuso e excesso nos procedimentos internos, inclusive para com os familiares que visitam os presos).


O respeito à integridade física e moral abarca, inclusive, a abstenção do Estado em agir de forma a violar o corpo do preso.


5. Da violação do art. 5º, XLVII, "e", da Constituição Federal


Assim determina o inciso XLVII do art. 5º da CF:


XLVII - não haverá penas:
e) cruéis;


Ao possibilitar que os condenados por crimes praticados dolosamente com violência de natureza grave contra pessoa ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da lei n.º 8.072/1990 sejam submetidos obrigatoriamente à identificação do perfil genético mediante extração do DNA, a lei permite que, além do cumprimento da pena de prisão, seja cumprido um novo tipo de pena a cumprir: a pena de identificação biogenética da pessoa, com repercussões em outras investigações ao bel-prazer da autoridade policial, do Ministério Público ou do próprio juiz, de ofício.


6. Do retrocesso pós-Lombroso


"As ideias defendidas por Lombroso acerca do "criminoso nato" preconizavam que, pela análise de determinadas características somáticas seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o crime." (Verbete "Cesare Lombroso" na Wikipedia)


Contra isto, a lei acrescenta que "as informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos" (§ 1º do art. 5º-A, acrescido pelo art. 2º da Lei n.º 12.654/2012).


Ora, a própria leitura biogenética do DNA por um especialista possibilita revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, conforme revelam vários estudos ao longo do mundo, mostrando sobretudo predisposição a doenças físicas ou psíquicas.


Tal descrição eleva o ideal de Lombroso a outro nível, levando-o ao nível microscópico. Basta que o juiz convoque um especialista para depor acerca das características biogenéticas para que uma sentença seja fundamentada na biogenética do acusado.


7. Conclusão


Ao invés de pensarmos o Direito Penal Mínimo, os legisladores estão sempre discutindo o Direito Penal Máximo, que há muito ficou provado estar errado e ser ineficiente.


A lei é materialmente inconstitucional. Parafraseando o Min. Marco Aurélio em jurisprudência citada anteriormente, a lei discrepa, a mais não poder, das garantias constitucionais implícitas e explícitas: preservação da dignidade humana, da intimidade e da intangibilidade do corpo humano.

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