A (IM)POSSIBILIDADE DA USUCAPIÃO EM BENS PÚBLICOS DOMINICAIS


Publicado em:
29/05/2023
Andreza Dias
Andreza Dias
Advogado

A (IM)POSSIBILIDADE DA USUCAPIÃO EM BENS PÚBLICOS DOMINICAIS

THE (IM)POSSIBILITY OF USUCAPIÃO IN PUBLIC PROPERTY DOMINICAIS

Andreza Vieira Dias

RESUMO


O presente artigo tem por objetivo verificar a viabilidade do instituto da usucapião em face de bens públicos, classificados como dominicais (os sem uso) no ordenamento jurídico brasileiro. A metodologia aplicada foi de pesquisa bibliográfica e estudo de posicionamentos doutrinários. O primeiro capítulo aborda o instituto da usucapião, o conceito, requisitos, bem como as classificações. O segundo visa conceituar os bens públicos e distingui-los. Por fim, no terceiro capítulo tratamos da (im)possibilidade jurídica do instituto da usucapião, confrontando as vedações previstas no parágrafo 3º do artigo 183 e o parágrafo único do artigo 191, ambos da Constituição Federal de 1988, com o Princípio da Função Social da Propriedade, prevista no artigo 5°, XXIII, da Constituição Federal, o qual é inerente a toda propriedade

PALAVRAS-CHAVE: Bens Públicos. Constituição Federal. Dominicais. Função Social.


ABSTRACT



This article aims to verify the viability of the usucapião institute in the face of public goods, classified as dominicais (unused) in the Brazilian legal system. The applied methodology was of bibliographic research and study of doctrinal positions. The first chapter addresses the institute of adverse possession, the concept, requirements, as well as the classifications. The second aims to conceptualize public Property and distinguish them. Finally, in the third chapter we deal with the (im) legal possibility of the usucapião institute, confronting the prohibitions provided for in paragraph 3 of article 183 and the sole paragraph of article 191, both of the Federal Constitution of 1988, with the Principle of Social Function of Property, foreseen in article 5, XXIII, of the Federal Constitution, which is inherent to all property

KEYWORDS: Public Property. Federal Constitution. Dominicais. Social


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo trata de analisar a possibilidade de usucapião sobre o bem público dominical, sob fundamentação do princípio da função social propriedade, previsto no art. 5, XII, da Constituição Federal. O objetivo deste estudo é argumentar a respeito da viabilidade de usucapião destes bens, considerando a sua prescrição aquisitiva, conforme artigo 3.º, I da Constituição Federal. Entretanto, atualmente é vedado qualquer modalidade de usucapião, no que se refere aos bens públicos.
No que tange as disposições que proíbem a usucapião de bens públicos, estão os artigos 183, § 3 e 191, parágrafo único da Constituição Federal 1988 e o artigo 102 do Código Civil de 2002, bem como também há o entendimento da Corte do Supremo Tribunal Federal (STF) súmula n° 340, que ampliam o entendimento também para os bens públicos desafetados.
Porém, a proibição da usucapião em públicos dominicais despreza o princípio da função social da propriedade, tornando-se injustificável a proteção constitucional para estes bens. Visto que, a posse e o direito de propriedade deverão ser exercidos de modo que efetive a função social, o qual, segundo a Constituição Federal deverá ser exercida em prol do coletivo. Constituindo uma discussão a respeito da viabilidade de usucapir estes bens dominicais, as quais esta pesquisa cumpre a analisar.
Cabe ressaltar que somente os bens públicos dominicais formalmente públicos são objetos de análise, ou seja, aqueles bens que não apresentam qualquer finalidade para o Poder Público, ou seja, aqueles que o Poder Público não demonstra interesse.
Assim sendo, como objetivo geral se pretende analisar as vedações constitucionais, bem como o princípio da função social da propriedade, com finalidade de verificar se há possibilidade de os bens públicos dominicais serem adquiridos por particulares por meio de usucapião.
Neste viés, esta pesquisa tem como objetivo específico: a) Compreender a natureza jurídica da Usucapião; b) Analisar a natureza dos bens públicos; c) Confrontar as vedações ao instituto da usucapião frente ao Princípio da Função Social.
A metodologia utilizada na composição desta pesquisa é de natureza exploratória, utilizando-se de conceitos doutrinários, jurisprudências, bem como o ordenamento jurídico. Tendo como método aferição: o dedutivo - com a finalidade de analisar doutrinas e dispositivos legais a respeito da possibilidade de usucapir bens públicos

2. REQUISITOS E FORMA DA USUCAPIÃO

Assim como grande parte dos termos jurídicos, a palavra "usucapião" é derivada do latim, através da junção do verbo tomar "capere" e a expressão pelo uso "usu", ou seja, formando assim "tomar pelo uso".
A usucapião, é o modo de aquisição de propriedade originário, criado com a intuito de garantir o direito de propriedade daqueles indivíduos que possuam apenas a posse de um determinado bem, seja ele móvel ou imóvel, por determinado tempo, desde que atendido as formalidades exigidas. Destarte, de acordo com Tartuce (2020, p. 207) a finalidade da usucapião é garantir “[...] a estabilidade da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se pode mais levantar dúvidas a respeito de ausência ou vícios do título de posse. De certo modo, a função social da propriedade acaba sendo atendida por meio da usucapião."
A posse ad usucapionem ou usucapível, apresenta características próprias que devem ser estudadas de forma aprofundada, tendo em vista que, não é toda posse que poderá prosperar a usucapião. Sendo elementos essenciais: Posse com intenção de dono (animus domini); Posse mansa e pacífica; Posse contínua e duradoura, em regra, e com determinado lapso temporal; Posse justa – A posse usucapível.
De acordo com Tartuce (2020), são considerados requisitos essenciais para toda usucapião: animus domini: Apresentar a posse como se dono/proprietário daquele bem fosse, ou seja, arcando com os bônus e os ônus; não deverá haver oposição à posse: Deve-se tratar de posse justa, ou seja, a posse violenta, clandestina ou precária nunca poderá prosperar em usucapião. Além disso, não poderá haver contestação a essa posse. A posse ininterrupta por certo lapso temporal: Deve-se apresentar tempo mínimo exigido para cada modalidade de usucapião.
Salienta-se que, o possuidor poderá somar o tempo de sua posse ao dos seus antecessores, desde que cumprido os requisitos legais da usucapião.
art. 1.243 O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé
Hoje, no Brasil, há a possibilidade de o procedimento ocorrer por via judicial e extrajudicial. O procedimento administrativo da usucapião, surgiu, por meio da Lei n.º 13.105/2015, passou a vigorar a execução do processo por meio do registro realizado em cartórios brasileiros, para proporcionar o descongestionamento do sistema judiciário, garantindo um procedimento mais célere em relação ao procedimento via judicial.
Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, há três modalidades de usucapião de bens imóveis, sendo as seguintes: usucapião ordinária; usucapião extraordinária; e usucapião especial. Conforme o art. 1.242 do Código Civil, tem direito a usucapião ordinária aquele que:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Portando, percebe-se que há necessidade da posse animus domini, por período mínimo de 10 anos, além de justo título e boa-fé. Caso o imóvel tenha sido adquirido onerosamente, por meio de um título que resulte em regular registro imobiliário, porém, sendo cancelado posteriormente por algum motivo, o prazo decairá para 05 anos. Porém, conforme o Enunciado n. 86 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil (2002), o termo título passível de registro em cartório deverá ser estendido a qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade. Mesmo que não haja o devido registro em cartório.
De acordo o caput do art. 1.238 do Código Civil, a usucapião extraordinária é:
Art. 1238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Conforme consta em seu parágrafo único, o prazo poderá decair para 10 anos caso a posse seja produtiva ou cumprir devidamente a função social e/ou possuidor fizer dela sua moradia ou executar obras de caráter produtivo.
No que tange a usucapião constitucional ou especial urbana (pro misero), de conforme o caput do Art. 183 da CF, possui o direito a usucapião desta modalidade:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Autorizado também no art. 1.240 do CC/2002, que assim versa:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Bem como, no caput do art. 9.º da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade):
Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Com a Lei 12.424/2011, incluiu também no sistema a usucapião especial urbana por abandono do lar, conforme evidenciado no art. 1.240-A do CC/2002:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Percebe-se que há semelhanças a usucapião especial urbana já prevista no art. 1.240 do CC/2002. A novidade é a redução do período da posse para 02 anos, sendo a menor prevista em nosso ordenamento jurídico. É perceptível que para haja o direito dessa modalidade de usucapião é necessário a comprovação do abandono de lar, obviamente, acompanhado dos demais requisitos. Portanto, caso haja disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem.

3. DOS BENS PÚBLICOS

Conforme os ensinamentos de CARVALHO FILHO (2009), os bens públicos referem-se ao patrimônio de qualquer natureza e qualquer título, que sejam de titularidade das pessoas jurídicas de direito público ou da administração descentralizada, incluindo as Fundações de Direito Público e as Associações Públicas.
Sendo assim, conceituam que:
consoante o direito positivo brasileiro, só são formalmente bens públicos os bens de propriedade das pessoas jurídicas de direito público. Significa dizer que somente têm bens públicos propriamente ditos: a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e as respectivas autarquias e fundações públicas de natureza autárquica. (ALEXANDRINO e PAULO, 2013, p. 983-984)
Segundo ALEXANDRINO e PAULO (2013), os bens das pessoas jurídicas privadas não são bens públicos, porem quando utilizadas para prestação de serviços públicos estarão sujeitas as regras do regime jurídico dos bens públicos.
Os bens inclusos aos Estados, ficam expostos no artigo no 26.º da Constituição Federal de 1988, de forma exemplificativa, o qual seu entendimento estende-se ao Distrito Federal, tendo em vista que, na Carta Maior não há menção aos seus bens públicos, equiparando-se aos Estados e também aos Municípios, por ter formação sui generis, reunindo as duas competências.
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I - As águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;
II - As áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;
III - As ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;
IV - As terras devolutas não compreendidas entre as da União

Em relação aos bens pertencentes aos Municípios não foi explicitado em nossa Constituição, porém, sabe-se que os municípios em regras são detentores de diversos bens a exemplo de praças, ruas e inclusive os próprios prédios de suas repartições.
Conforme Maria Sylvia Di Pietro (2009), os critérios para classificação dos bens públicos são a destinação ou afetação dos bens, divididas em três categorias: uso comum do povo; bens especiais e por fim os bens dominicais.
. No que está relacionado a primeira categoria são os bens de uso comum do povo, são aqueles destinados a toda a coletividade. De acordo com CARVALHO FILHO (2010), nesta categoria prevalece a destinação pública, ou seja, garantindo sua efetiva utilização pela coletividade. Porém, em qualquer tempo, o Poder Público poderá regulamentar o uso e inclusive restringir o uso, conforme o caso, desde que se proponha à tutela do interesse público, a exemplo a proibição da ida à praia como uma medida de combater o novo coronavírus que assola o Brasil e o mundo.
No que diz respeito a segunda categoria sãos bens especiais são aqueles que buscam à concretização dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral. Nos termos do art.99, II, do Código Civil:
São bens de uso especial os edifícios públicos, como as escolas e universidades, os hospitais, os prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário, os quartéis e os demais onde se situem repartições públicas; os cemitérios públicos; os aeroportos; os museus; os mercados públicos; as terras reservadas aos indígenas etc. Estão, ainda, nessa categoria, os veículos oficiais, os navios militares e todos os demais bens móveis necessários às atividades gerais da Administração, nesta incluindo-se a administração autárquica, como passou a constar do Código Civil em vigor. (CARVALHO FILHO, 2014, p. 1164)
E, por fim a terceira categoria são os bens dominicais, CARVALHO FILHO (2010) explica que são aqueles bens que pertencem ao patrimônio público e que não se enquadre em nenhuma das categorias acima descritas, ou seja, residuais, conforme elucidado no art.99, III, do Código Civil:
São os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal (MELLO, 2011, p. 921)
Quanto a disponibilidade os bens públicos dividem-se em: bens indisponíveis; bens patrimoniais indisponíveis e bens patrimoniais disponíveis.
No que diz respeito aos bens públicos indisponíveis tratam-se daqueles que não possuem caráter patrimonial e são impossíveis de alienação pelo poder público. São exemplos de bens indisponíveis em regra os bens de uso comum do povo.
Conforme ensinamentos de Maria Sylvia Di Pietro (2009), os bens patrimoniais indisponíveis possuem características patrimoniais dos bens e sua indisponibilidade ocorre pelo fato do bem-estar ele afetado a um fim público.
Por fim, de acordo com CARVALHO FILHO (2008), os bens patrimoniais disponíveis são todos os bens dominicais, em razão dos bens não possuírem destinação ao público e não ser utilizados nas atividades administrativas. Por essa razão, os bens desafetados podem ser alienados conforme art. 101 do Código Civil.
No que concerne ao Regime Jurídico dos bens públicos, apresentam como principais características: alienabilidade condicionada; impenhorabilidade; imprescritibilidade e não-onerabilidade.
No que toca a alienabilidade condicionada: São alienáveis os bens dominicais, conforme art. 101 do Código Civil Brasileiro, sendo necessária a autorização legislativa específica; avaliação feita pela Administração Pública e procedimento licitatório;
Tendo em consideração a impenhorabilidade: Os bens públicos não são objetos de penhoras, porém há possibilidade contra a Fazenda Pública (procurar artigo do CPC), feito mediante precatórios, conforme artigo 100 da Constituição Federal de 1988.
A impenhorabilidade tem o escopo de salvaguardar os bens públicos desse processo de alienação, comum aos bens privados. Com efeito, admitir-se a penhora de bens públicos seria o mesmo que admitir sua alienabilidade nos moldes do que ocorre com os bens particulares em geral. A característica, por conseguinte, tem intuito eminentemente protetivo. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 1058),
A imprescritibilidade: para CARVALHO FILHO (2007, p. 997), “A imprescritibilidade significa que os bens públicos são insuscetíveis de aquisição por usucapião, e isso independentemente da categoria a que pertençam"
Neste sentido, conceituam:
Assim, mesmo que um particular tenha a posse pacífica de um bem público pelo tempo necessário à aquisição por usucapião dos bens privados, conforme regulado no direito privado, ou por qualquer período de tempo, a bem da verdade, não adquirirá direito de propriedade sobre esse bem. (ALEXANDRINO e PAULO, 2013, p. 992)
Por fim, a não-onerabilidade: os bens públicos não podem ser usados como garantia para débitos da Administração Pública.
De acordo com CARVALHO FILHO (2009) a afetação e desafetação são fatos dos administrativos mutáveis, os quais indicam a alteração de finalidade dos bens públicos. Em regra, os bens públicos são incorporados ao patrimônio para cumprir determinada destinação. Essa condição é chamada de afetação. De acordo com JUSTEN FILHO (2006, p. 717-718) A afetação é a “destinação do bem público à satisfação das necessidades coletivas e estatais, do que deriva sua inalienabilidade, decorrendo ou da própria natureza do bem, ou de um ato estatal unilateral." Portanto, um bem afetado é aquele que possui finalidade para a Administração Pública.
Entretanto, os bens dominicais por não possuírem qualquer destinação são chamados de bens desafetados. Conforme os ensinamentos de Marçal Justen Filho “A desafetação constitui-se no desligamento do bem da estrutura organizacional institucional estatal. O bem continua a ser público, mas deixa de ser necessário ou útil para o desempenho das funções próprias do Estado”
Um prédio onde haja uma Secretaria de Estado em funcionamento pode ser desativado para que o órgão seja instalado em local diverso. Esse prédio, como é lógico, sairá de sua categoria de bem de uso especial e ingressará na de bem dominical. A desativação do prédio implica sua desafetação. Se, posteriormente, no mesmo prédio for instalada uma creche organizada pelo Estado, haverá afetação, e o bem, que estava na categoria dos dominicais, retornará a sua condição de bem de uso especial. Outro exemplo é o da desestatização (privatização), que também pode render ensejo à desafetação. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 1055)
Dessa forma, é possível verificar que, a afetação e desafetação não são estáticas e podem ser modificadas ao decorrer do tempo.

4. A (IM)POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS DOMICAIS (FORMALMENTE PÚBLICOS)

A propriedade trata-se de um direito fundamental de segunda dimensão, ou seja, é voltado aos direitos socais, com titularidade coletiva e com caráter positivo, pois dependem de o Estado estabelecer por normas a destinação dos bens, atentando-se a liberdade de propriedade, porém de forma que respeite os direitos de terceiros. A função da propriedade e da posse devem respeitar a ordem econômica, ambiental e da segurança.
Nessa direção, o Código Civil, em seu art. 1.228, expõem as condições de propriedade, o qual poderá usar, gozar, dispor da coisa e direito de reaver o bem retirado injustamente, mas também tem o dever de utilizá-lo conforme lei. Percebe-se que a função social é inerente a propriedade, ou seja, que é próprio da propriedade. Consequentemente, todo imóvel deverá cumprir a função social, inclusive, os bens públicos, conforme exposto na Constituição Federal em seu Art. 5°, inciso XXIII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Para que a função social seja cumprida, de acordo com Art. 186 da Constituição Federal, a função social da propriedade rural é cumprida quando há o aproveitamento de forma adequada, utilização dos recursos naturais, mas preservando o meio ambiente, bem como observância das disposições que regulam as relações de trabalho, atentando-se o bem-estar ao bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, enquanto a propriedade urbana atendem a sua função social quando cumprir as exigências no plano direto, bem como assegurar que cumprem as necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, conforme exposto no art. 39 da Lei n° 10.257/2001. Pode-se observar que, de acordo com este princípio não basta apenas ter a propriedade e usar a posse para si, mas sabê-la usar em prol da coletividade.
A função social da propriedade trata-se de um princípio essencial para o Estado e a democracia, visando a melhor distribuição de renda e possibilitar a melhor distribuição patrocínio, ou seja, voltada para equilíbrio econômico-social. Por essa razão, atualmente é inadmissível que o direito de propriedade seja imprescritível. Essa crítica trata-se para os bens públicos sem uso, os quais apresentam apenas como patrimônio estatal e sem qualquer gerencialmente, tendo em vista que, assim como particular, o público também tem o dever de cumprir a função social de suas propriedades. Desse modo, aqueles bens dominicais sem uso se tratam uma afronta ao princípio.
Segundo Maria Sylvia Di Pietro (2009, p. 639), os bens dominicais apresentam as seguintes características:
1. comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; a consequência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração; 2. submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado.
Porém, ainda que não possua qualquer finalidade social é inadmissível usucapião qualquer modalidade de usucapião em bens públicos, estas proibições se dão em razão da proteção especial aos bens públicos, conforme exposto nos Arts. 183, § 3.º; 191, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 e Art. 102 do Código Civil:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.

Tais críticas não recaem aos bens de uso comum do povo ou ao uso especial da Administração Pública, mas, para aqueles que se encontram sem qualquer atividade. Essa proteção patrimonial aos bens demonstra abuso do poder em ser proprietário. Tendo em vista que, se a propriedade necessita de alguma destinação, a qual é atingida através da posse, pois é ela que satisfaz a função social.
Segundo GONÇALVES (2010), a propriedade é o direito, enquanto a posse, segundo a teoria de Ilhering, a posse é o ato de ser dono, ou seja, o fato. Através desta teoria é nítido que o Estado, em relação aos bens dominicais sem uso é o proprietário do bem, porém, não é o possuidor, pois não o forneceu nenhuma destinação.
Desta forma, argumenta-se a possibilidade de usucapião de bens públicos dominicais sem uso com fundamentação no princípio da função social da propriedade.
O direito de propriedade, constante no Art. 5°, XII da Constituição Federal de 1988, trata-se de norma constitucional, porém com eficácia contida, pois possuem aplicabilidade imediata, mas não integral, tendo em vista que, podem ter seu alcance reduzido em leis e, inclusive, no princípio da função social.
Entretanto, a função social, disposta no Art. 5°, XIII da Constituição Federal de 1988, trata-se de norma constitucional de eficácia plena, conforme os ensinamentos de LENZA (2011) as normas de eficácia plena são aquelas que possuem aplicação imediata e direta, e seus efeitos não podem ser suprimidos por norma integrativa infraconstitucional.
Logo, verifica-se que uma das condições da propriedade é a função social. Consoante os ensinamentos de FARIAS e ROSEVALD (2013) a impossibilidade de usucapir bens públicos dominicais é equivocada por ofender a função social. Pode-se concluir que, mesmo com a ausência de norma que regulamente a usucapião destes bens, deve-se entender que a função social além de princípio é uma cláusula norteadora da propriedade e sua aplicação é plena.
A respeito da não isenção do Poder Público ao cumprimento da função social, conceitua-se:
A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função socia. (FORTINI, 2004, p.117)
Neste sentido, Coutinho (2009), diferencia os bens públicos em duas divisões: formalmente públicos: os materialmente públicos, sendo aqueles que possuem finalidade, ou seja, possuem função público-social; e os formalmente públicos, sendo esses, desafetados de qualquer destinação pública, ou seja, sendo públicos, apenas por ser do Poder Público, sendo esses passíveis de prescrição aquisitiva e consequentemente da usucapião.
No que se refere a imprescritibilidade dos bens públicos é expressamente vedada, conforme Art.s 183, § 3.º e 191, parágrafo único, não deixando margem para bens os dominicais. Porém, em relação a alienações há uma diferenciação dos bens públicos, conforme pode ser observado no Art. 102 da Constituição Federal de 1988. De acordo com BASTOS (1999), este entendimento não poderia estender-se aos bens formalmente públicos (dominicais), tendo em vista que, são públicos, em razão do seu titular, devendo seguir o mesmo entendimento dos bens particulares.
Neste seguimento, conceituam que:
Por fim, o art. 102 do Código Civil adverte que os bens públicos não estão sujeitos à usucapião. O legislador foi radical ao deixar claro que a impossibilidade de usucapião atinge todos os bens públicos, seja qual for a natureza ou a finalidade. A nosso viso, a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao princípio constitucional da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade. Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social. Porém, a Constituição Federal não atendeu a esta peculiaridade, olvidando-se de ponderar o direito fundamental difuso à função social com o necessário dimensionamento do bem público, de acordo com a sua conformação no caso concreto. Ou seja: se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo materialmente público, haveria óbice à usucapião. Esta seria a forma mais adequada de tratar a matéria, se lembrarmos que, enquanto o bem privado “tem” função social, o bem público “é” função social. (FARIAS e ROSEVALD, 2006, p. 267-268)
Diante disso, percebe-se que a problemática ocorre de fato no conflito com outro princípio, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Porem analisando profundamente, percebe-se que neste caso, a função social da propriedade tem caráter social, buscando melhorias de famílias, dando-as moradia, contribuindo com diminuição de famílias em estado de miséria, enquanto a supremacia do interesse público visa proteger os bens que a própria administração pública não sabe gerir e/ou não tem interesse de gerir, tendo em vista que se encontram sem qualquer destinação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, conclui-se que o princípio da função social não é apreciado corretamente no que se refere ao instituto da usucapião em face de bens públicos, tendo em vista que, os bens formalmente públicos (bens dominicais) não possuem destinação, são bens inativos e improdutivos, ou seja, descumprem o princípio constitucional. Desta forma, é legitimo a usucapião destes bens dominicais.
Contudo, a Constituição Federal de 1988, protege-os de qualquer modalidade de usucapião, conforme exposto nos Art.s 183, § 3.º; 191, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 e Art. 102 do Código Civil.
Além disso, sabe-se que o direito de propriedade não é absoluto, pois podem ter seu alcance reduzido com relação à função social da propriedade que se trata de um princípio de aplicação imediata.
É importante salientar que instituto da usucapião é um mecanismo que dá acesso à moradia, a qual é um direito fundamental para garantir a dignidade humana, devendo se sobrepor ao direito de propriedade destes bens.
Tendo em vista que não basta apenas ter a propriedade e usar a posse para si, mas sabê-la usar em prol da coletividade, independentemente de ser público ou privado. E, em caso de descumprimento do princípio, o reconhecimento da prescrição aquisitiva deste bem público, possibilitando a usucapião.
Além disso, a possibilidade da existência de usucapião de bens dominicais, obrigaria o poder público a gerir melhor os seus bens, impedindo a atuação com desídia e omissa sobre os bens desafetados, podendo, inclusive, alienar nos termos da lei.
Portanto, a viabilização jurídica de usucapião de bens públicos tem papel fundamental na construção de uma sociedade justa e igualitária. Tendo em vista que, o Poder Público é detentor de um grande acervo imobiliário em desuso, as quais poderiam contribuir para construir uma sociedade mais igualitária.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. DIREITO ADMINISTRATIVO DESCOMPLICADO. 21. ed. rev. e atual. SÃO PAULO: Método, 2013.

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